08 Abril 2014
Marcel Uwienza, um jesuíta de Ruanda, conta como a fé o levou a perdoar aqueles que exterminaram grande parte da sua família e como a reconciliação favoreceu trazendo a sua vocação, levando-o a entrar na Companhia de Jesus.
O artigo foi publicado na revista Popoli, de abril de 2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
O genocídio contra os tutsi em 1994, para mim, não foi apenas uma tragédia; também me deixou feridas que levaram tempo para cicatrizar. Lembro que, depois de julho de 1994, quando o genocídio terminou, era muito difícil amar ou ver algo de bom em um vizinho, especialmente naqueles que tinham exterminado a minha família.
Alguns dos nossos vizinhos mataram o meu pai, o sepultaram e depois exumaram o seu corpo para dá-lo de comer aos pássaros e aos cães. Jogaram os meus dois irmãos e a minha irmã vivos em uma fossa usada como latrina e os deixaram morrendo ali. Levaram a minha avó materna e alguns primos ao grande rio Nyabarongo e ali os jogaram, fazendo-os se afogarem. Violentaram a minha tia, contagiando-a com o HIV-Aids. Bateram e feriram a minha mãe tão fortemente que as consequências das feridas a levaram à morte.
Como eu podia viver e amar essas pessoas novamente? Não, eu não estava pronto para fazê-lo. Eu não estava pronto para ouvir aquele Deus que nos chama a amar os nossos inimigos! Por que Ele tinha deixado que matassem as pessoas que eu amava como se fossem baratas? Por que Nkurunziza e Kanani tinham matado os meus entes queridos? Lembro que o meu pai lhes havia dado um pedaço de terra e tinha pago as mensalidades escolares dos seus filhos.
Porém, esse Deus não tinha me abandonado! Por que eu tinha sobrevivido? Por que eu ainda estava vivo? Eu era melhor do que aqueles que foram mortos? Por que os autores do genocídio não descobriram a grande colmeia vazia do senhor Kabera na qual ele tinha me escondido durante os massacres?
Essas perguntas me perturbaram por anos. Eu não conseguia ver um futuro sem o meu pai, a minha mãe e os meus irmãos. Eu tinha me tornado prisioneiro de mim mesmo. Até que eu li o Salmo 116: "Como retribuirei ao Senhor por todo o bem que ele me fez...?" (v. 12). Foi aí que me dei conta de que me fora dado mais tempo para viver, um tempo que eu deveria usar o melhor possível para Deus.
Alguns anos depois, voltei para o vilarejo de Kabirizi, Gitarama, onde eu vivia com a minha família e, para minha surpresa, encontrei um dos assassinos dos meus irmãos e da minha irmã. Não podia acreditar nos meus olhos. Quando ele me viu, veio até mim. Pensei que ele estava vindo para me matar também. Ao invés, como em um filme, se ajoelhou na minha frente e pediu perdão. Depois de alguns momentos de confusão, em que eu continuava me perguntando o que estava acontecendo (com sensações contraditórias que eu não consigo descrever), eu o peguei, o abracei e lhe disse: "Eu te perdoo. O Senhor foi bom comigo".
A partir daquele momento, me senti livre! Entendi que o perdão cura mais quem perdoa do que quem foi perdoado. As minhas feridas curaram os outros. Foi assim que eu entendi que devia me entregar ao Senhor como companheiro de Jesus. E é como jesuíta que eu escrevo.
Senti-me atraído pela Companhia de Jesus, acima de tudo, pela profundidade das pregações e das conversas no Centro Christus, o centro espiritual dos jesuítas na capital, Kigali. Ouvindo-os, ele me pareciam diferentes. Conheciam as feridas do nosso mundo e me fizeram entender como também o Filho de Deus foi ferido.
Pareciam tão livres, embora eles também estivessem feridos. Como jesuíta, experimentei a serenidade da alma. Compreendi como as minhas feridas me aproximam a Deus; tornar a Sua graça evidente aos outros pode ajudar a quem foi profundamente ferido na luta, porque todos buscamos a reconciliação e a salvação.
Experimentar o poder do Espírito ao transformar os corações das vítimas e dos seus carnífices e, portanto, restabelecer a fraternidade me fizeram crescer. A minha história é uma das muitas histórias de renascimento para a nova vida em Cristo, uma história de amor e de abandono a Jesus. Que ele possa manter vivo o fogo da fé!
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Ruanda: genocídio e perdão. O testemunho de um jesuíta - Instituto Humanitas Unisinos - IHU